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terça-feira, 10 de outubro de 2017

BCC - Brazilian Crossdresser Club

Quando a internet teve início no Brasil lá nos confins de 1995, descobri que havia outras pessoas como eu, que gostavam de usar roupas de outro sexo. Ninguém sabia ainda como isso se chamava. Era tudo muito novo. O primeiro grupo que fiz contato foi o BCC - Brazilian Crossdresser Club, assim mesmo com nome inglês para dar sofisticação à iniciativa. Fiquei associada e a principal forma de contato entre as integrantes era por troca de e-mail e reuniões que aconteciam de tempos em tempos chamadas de HEF (homme en femme). Eram encontros que demoravam um tempão para ser realizados. A preparação arrastava-se por semanas e semanas e, na ocasião, as CDs podiam passar um fim de semana inteiro vestidas de mulher. Era a grande realização das associadas. Nunca participei desses HEFs.

Não lembro quanto tempo fiquei associada, sei que fui meio que expelida do BCC por debater temas religiosos e políticos, considerados um anátema pelas dirigentes retrógradas. Pelo BCC, fiquei sabendo de uma pesquisa realizada por uma psicóloga (não lembro o nome agora) que depois de entrevistar dezenas de CDs chegou à conclusão que a cdzinha sentia prazer em - simplesmente - se vestir de mulher. Ponto final. Escrevi na época que isso era um absurdo que a CD se veste de mulher para atrair a atração do macho. Ela quer se sentir desejada. Ela quer sentir que o pau do macho se levanta por ela.  A psicóloga respondeu que cada uma era cada uma e não tinha condições de opinar sobre tantas subjetividades. Algo nessa linha.

Graças ao BCC, participei de reuniões com outras CDs. Lembro de uma festa em um bar de Moema. No estacionamento, os manobristas ridicularizavam as CDs rindo na nossa cara. Me recordo de uma festa em um bar no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. Foi um evento legal, com muita gente, com um toque surreal. Em certo momento apareceu um padre e rezou uma missa rápida ali mesmo. As Cds, travas e bichas se enfileiravam para receber a eucaristia. Isso lá pelas 2 da manhã.

Encontrei com uma CD no Hotel Moncloa, na rua Augusta, e de lá fomos visitar um rapaz casado, que morava em Santo Amaro, e que também era CD. Em outra oportunidade, estive no apartamento de Paula Andrews, uma CD loira, alta, madura e muito bonita. A gente conversou um tempo. Ela me serviu vinho e, de repente, chegou um senhor para uma visita fora de hora. Achei estranho aquilo, mas me liguei rápido que era uma forma dela se prevenir. Uma bobagem! Nunca senti tesão por outra CD. Jamais iria "atacá-la" sexualmente.

Eram encontros esporádicos, que eu não sabia exatamente por que participava. Havia o desejo de usar vestidos, sandálias, perucas, se depilar e esses eventos, talvez, fossem o nosso álibi.

Em determinado momento, uma CD empreendedora assumiu a presidência do BCC e passou a aproximar mais as associadas. Houve uma iniciativa interessante, que foi alugar um apartamento no Largo do Arouche, onde as CDS dividiam os custos e podiam ter armários privativos, com suas roupas para o que se chama de "montagem". Muitas delas eram casadas ou então suas famílias não sabiam que elas eram CDs. Por isso, o apartamento escondido era uma solução satisfatória.

Fui a um jantar com essa nova presidente do BCC no restaurante O Gato que Ri, mas não simpatizei com ela. Ela era casada com uma transexual jovem, muito atraente, que trabalhava como hostess em um bar frequentado por sadomasoquistas. O bar chamava-se Dominna e ficava na Aclimação.  Lembro que me ofereci para dividir a conta do jantar e ela arrancou meu cartão da mão do garçom e disse pra mim: "Se você quer tanto gastar seu dinheiro, vou jogar todas as minhas contas para você acertar", ela esbravejou. Bem grosseira. Na frente de todo mundo.

Nesse jantar, houve uma baixaria envolvendo duas CDs e a esposa de uma delas, que estava com ciúmes de alguém. Ao meu lado, sentava-se um rapaz delicado, loirinho, que foi logo me perguntando se eu era hétero e casado. O BCC reunia supostamente homens héteros que usavam roupas femininas. Falei que não. Disse que gostava de homem e também, de usar roupas femininas. Me sentia bem, usando vestido e lingerie. E me sentia mal, com roupas masculinas. A mulher de uma CD mais velha queria saber se toda CD era mesmo hétero ou se haveria algum risco, um sinal vermelho escrito GAY, em neon ali pela frente. As CDs respondiam ao mesmo tempo, dizendo que não, não haveria risco algum, toda CD era um homem hétero, que só gostava de usar roupas femininas.

Foi por essa época que um canal de TV fez uma reportagem especial sobre as crossdressers. O repórter foi ao largo do Arouche. Entrevistou três CDs, que reforçavam o tempo todo o discurso de "somos héteros e gostamos de usar roupas femininas".  Na realidade, uma das entrevistadas era casada com uma trava, mas isso não apareceu na matéria.

O BCC teve o mérito de juntar pessoas que tinham os mesmos desejos e não conseguiam realizá-los. Foi uma iniciativa importante para aquela época. Lastimo que suas dirigentes fossem tão conservadoras.

Recentemente, em uma sala de bate papo, soube que aquela presidente empreendedora do BCC havia falecido. Paula Andrews mudara-se para uma cidade litorânea do Rio de Janeiro. O Dominna fechara, mas o Gato que Ri continua ainda em plena atividade. Há poucos dias, Laerte e outras trans reuniram-se no Gato para um jantar. Laerte, por sinal, deu uma entrevista na semana passada, dizendo que havia se enganado por muito tempo. E que sua mulherice na realidade escondia uma realidade bem simples: ele é gay. 

   

É tudo verdade